sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O livro do Anthony de Sá: a nossa realidade vista pela segunda geração

A sessão no Consulado de Toronto com o escritor Anthony de Sá, para lançar BARNACLE LOVE teve lugar a 26 de Junho de 2008. O lançamento da tradução portuguesa do livro, TERRA NOVA, teve lugar a 30 de Abril na Casa dos Açores do Ontário (CAO). Em ambos os casos constituiríamos uma audiência de mera vintena.
Não somos uma comunidade de leitores e Anthony, na sua simplicidade e bonomia, dado o êxito de que foi alvo no mundo literário canadiano e internacional, teve a amabilidade e o gosto de partilhar com a sua comunidade de origem, esta primeira obra, assim como já o fez em encontros organizados em Portugal e no Brasil.
Nos dois casos, depois da apresentação do livro – pelo Leitor de Português José Pedro Ferreira e a advogada Connie Freitas, em 2008, e pela autora Fátima Toste em 2010 - teve início uma sessão de perguntas e respostas, um autêntico diálogo com a audiência que dificilmente teria sido possível, afinal, com um grupo maior.
Anthony revelou-se um homem aberto, de uma enorme simpatia, que se encontra grato com a vida e que reconhece que está a passar momentos maravilhosos após o reconhecimento de que foi alvo no mundo literário nacional e internacional. E para maior voto de confiança, já foi pago pelo segundo livro, CARNIVAL OF DESIRE cuja escrita ele está prestes a completar em condições difíceis, pois é professor do ensino secundário há vinte anos e pai de três filhos menores.
Anthony é para nós um pioneiro luso-descendente na literatura canadiana. Se é bem verdade que já tínhamos dois autores publicados em inglês na edição original, reconhecidos no mainstream literário anglófono - Paulo da Costa e Erika de Vasconcelos -, apenas esta nasceu em solo canadiano, em Montreal, filha de continentais. Anthony é filho de pioneiros açorianos, imigrados aos vinte e poucos anos de idade e nasceu em Toronto, onde ainda vive, no bairro dominado pela igreja de Santa Maria/ St. Mary’s, sita no Portugal Square, onde todos os anos tem lugar a procissão do Senhor Santo Cristo.
Como pessoa de segunda geração, que viveu os reveses duma família imigrada nos anos cinquenta, com tudo de negativo e positivo que isso comporta, Anthony vivenciou não só as mazelas do nosso grupo étnico, em particular o alcoolismo dos homens e a ausência física e psicológica dos adultos, tanto em casa como na escola dos filhos – resultado do excesso de trabalho e do trauma migratório -, como também as grandes qualidades da nossa primeira geração. Entre elas, a enorme capacidade de trabalho que faz com que se sustente uma ou mais famílias, que se compre e pague uma casa em tempo recorde – o maior e melhor investimento da pessoa comum -, a entreajuda no seio da família, nomeadamente no movimento migratório; e a busca da auto-suficiência dentro e fora de casa.
Anthony aprendeu a fazer tudo dentro de portas, até as tarefas designadas femininas; felizmente nem ele nem a irmã foram submetidos à tirania da divisão dos sexos nas tarefas domésticas. Da boca do pai, já falecido, ouviu dizer que um homem só deve precisar de uma mulher para uma coisa!
Sobretudo, o Anthony aprendeu o valor do dinheiro e do conforto material, que não considera como valores adquiridos. Cito:
I’m not sure if our [own] kids are better off. Our kids don’t value what they have as much as we did. We understood the value of money and we never took for granted what we had.
Outra constante que ele continua a testemunhar, trinta anos mais tarde, e desta vez como professor, é a falta de comparência dos pais à escola, para reuniões com os professores, etc., lamentando que se trata agora de pais da idade dele (43 anos), pessoas que falam inglês em casa com os filhos e frequentaram o sistema escolar canadiano, o que leva ainda às mesmas consequências – a percentagem elevada de abandono escolar de lares onde ainda se fala o português, devido à presença de avós portugueses (ou por terem chegado há pouco de países lusófonos). Os modelos negativos, como os positivos, tendem a reproduzir-se de uma geração para a outra, amiúde inconscientemente.
Quando disseram ao Anthony que em muitos destes lares se continua a trabalhar em mais de um emprego, o escritor admirou-se. Não pensava que as coisas ainda estavam neste pé. E que o alcoolismo, o abuso de menores e das mulheres ainda não foram relegados ao passado.
Anthony e Connie, luso-descendentes, levantaram um espelho feito de palavras às nossas caras e nós vemo-nos como eles nos vêm na intimidade – não só como seres angustiados, carentes e por vezes ausentes de espírito, mas também como pessoas bem-intencionadas, honestas, trabalhadoras, mortificadas pelas responsabilidades impostas pela imigração, pelas obrigações familiares, pela fé, e pelo nosso desconforto de viver entre dois mundos. Se os pais vivem com um pé em cada continente, cultural e/ou geograficamente, os filhos, como nos diz Anthony, vivem com um pé no passado e outro no futuro. Eu acrescentaria, como imigrante de longa data, que essa ginástica, que nos deixa existencialmente doridos, tem muito de positivo, pois faz-nos ver mais além e sentir mais fundo e saber avaliar melhor as opções de vida, ou a falta delas.
A edição original em inglês foi justa e poeticamente intitulada Barnacle Love. Barnacle pode traduzir-se por “amor de craca” (ou percebe), marisco gostoso criado na rocha, mas neste caso, símbolo do amor incondicional dentro da família, exposto às marés, às tempestades e ao sol da unidade familiar que, como nos sugeriu José Pedro, simultaneamente, nos ajuda transcender as vicissitudes da existência precária da condição de imigrante e nos impede de largar a rocha do nosso descontentamento –, e do nosso posicionamento ainda precário, se semi-centenário, no seio da sociedade canadiana.
Fátima Toste reiterou que o livro, agora traduzido, “retrata com nitidez os sonhos, a vida, as ilusões e desilusões dos imigrantes açorianos que atravessaram o Atlântico rumo à Terra Nova; os relatos que o autor ouviu na área da Palmerston Avenue sobre as aventuras e desventuras daqueles que partiram na tentativa de fugir da pequenez da ilha e da pobreza”. Focou o facto de as crianças serem punidas duramente por pequenas coisas - como o simples pôr batom de uma rapariga -, e de se tratar de uma obra para ser lida com o coração.
No lançamento de Terra Nova na Casa dos Açores, notei que Anthony já se sentia mais confiante a falar português, algo que aprendeu incialmente, como tantos jovens luso-descendentes, devido à presença da avó em casa na sua infância. Tem orgulho nas suas raízes e não desdenha o contacto com a sua comunidade de origem. Aguardamos com expectativa o seu segundo livro.

Ilda Januário

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