Duas das minhas deslocações para fora de Leiria neste Inverno foram motivadas por eventos literários. No fim de Fevereiro foi o excelente encontro de escritores, Correntes d'Escritas, na Póvoa do Varzim, onde sempre brilha a presença orgulhosa e declaradamente açoriana do escritor Onésimo Teotónio de Almeida, ao ponto de sentirmos que é ele o embaixador das Letras açorianas no Continente, como o é na América.
Nas Correntes também constou do programa Ivo Machado, um poeta terceirense com uma voz de veludo escuro e opulento, que lê bem o que escreve, vive no Porto, e não é identificado com a sua ilha, nem o arquipélago. Talvez porque não tenha atravessado o Atlântico para o Oeste, para as Américas, travessia que se assemelha a um segundo baptismo, expondo, por baixo da bata molhada da portugalidade, a roupa azul e branca da açorianidade. A bata seca no outro lado, mas passa a andar mais desabotoada, sem medos de mostrar o que vai por baixo nem de lá pôr nódoas de preconceitos centenários…
Uma amiga fez-me chegar à caixa do correio electrónico um convite para a Semana da Cultura Açoriana no S. Luiz, de 2 a 7 de Março. Para a noite da Literatura, estava também agendado o Onésimo, entre outros intervenientes. Onésimo, cujo nome se compõe de letras incluídas na palavra omnipresente, digo a brincar, pois este autor e amigo é um conferencista muito solicitado e viajado. Apanhei o Expresso para Lisboa e depois o autocarro, para a Baixa. Deliciei-me com a viagem sinuosa e sacudida que a geografia de Lisboa impõe aos passageiros habituados a viajar por linhas rectas e por ruas raramente calcetadas, nas urbes norte-americanas. Fiquei a conhecer o S. Luiz, lugar bastante digno e bonito para o evento.
O serão, subordinado ao tema "Vitorino Nemésio e Depois…", decorreu com grande interesse. Nuno Costa Santos (jornalista, guionista, humorista e escritor), o moderador, começou por apresentar no ecrã uma entrevista dada por Nemésio à RTP. Nela, Nemésio referiu-se a si mesmo como sendo essencialmente "um comunicador".
Fernando Cristóvão, aluno e discípulo de Nemésio, na sua comunicação, fez jus à pluridisciplinaridade da obra do Mestre como a chave para entender o contributo deste para as Letras e até as ciências portuguesas. Nemésio foi não só colaborador em jornais e revistas literárias (Seara Nova, Presença, O Diabo e Diário Popular), como ajudou a fundar e a dirigir outros jornais e revistas (Gente Nova) e, no fim da sua carreira, assumiu a direcção do jornal O Dia. Colaborou na televisão com a reconhecida rubrica Se bem me lembro e foi romancista, cronista, ensaísta, poeta, biógrafo e crítico literário. Finalmente, foi ele o criador do conceito de Açorianidade em 1931, que tanta tinta tem feito escorrer desde então, em particular desde os anos setenta, quando Onésimo, na Universidade Brown nos EUA, retomou o conceito e desbravou caminho sobre a possibilidade de haver, ou não, uma Literatura açoriana.
Onésimo T. Almeida, depois de relaxar a audiência com algumas piadas, como é seu hábito, enveredou pela leitura da sua comunicação que se destacou, para esta ouvinte, por uma visão geral sobre a evolução da vida literária e intercâmbios culturais entre Açores com os países de emigração, sobretudo desde os anos noventa até ao presente.
Os anos noventa e o princípio do milénio, constituíram um período marcado por grande movimentação e criatividade nas Letras açorianas. Seguiu-se uma fase posterior, de abrandamento, que vai até ao presente, marcada também pela perda do suplemento literário açoriano, SAAL, e da editora Salamandra de Lisboa, que publicou mais de cem obras de autores
açorianos. Para citar Onésimo:
"Diríamos que se operou uma institucionalização da cultura açoriana no discurso oficial, na Universidade (foi mesmo criada a cadeira de Literatura Açoriana), a realidade da personalidade cultural insular e a sua expressão literária e artística em geral passaram a quase nem ser contestadas e são regular e sistematicamente afirmadas e defendidas. Mas sente-se - a nível das letras - a falta de algo que permita a continuação do antigo diálogo que se estendia dos Açores a Lisboa, ao Canadá, aos EUA e ao Brasil."
Terminou a sua comunicação enumerando casos de desconhecimento de autores açorianos no continente e cito a frase que melhor me pareceu resumir a situação e que me fez relembrar a de Ivo Machado, que conheci nas Correntes:
"Os Açores tiveram e têm razões de queixa da falta de reconhecimento da sua literatura ao longo de mais de um século. Autor que não resida no Continente, que não se integra adquirindo a cidadania continental, simplesmente não existe."
Foi novidade para nós, a audiência, constatar que os políticos portugueses mais insignes recorreram à ajuda de homens de Letras, como Onésimo, para desenvolverem o debate sobre as regiões insulares com a União Europeia.
Por último, procedeu-se à leitura de poemas em forma de carta retirados da Literatura açoriana, ilustrando a correspondência entre os que emigraram e os que ficaram, na voz treinada do poeta Vasco Pereira da Costa.
Lamento não ter assistido a mais nenhum dos eventos desta Semana, mas fico grata por ter tido oportunidade de lá ter estado para este e espero que se repita.
Ilda Januário, Canadá
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